domingo, novembro 19, 2006

Uma Breve História do Caos: Caosmos.

Se houve uma inversão no sentido de caos (tal como nos parece e como informam os textos), essa inversão começa a se dissolver quando ordem e desordem passam a ser intimamente inter-relacionadas, como já indicava Hume. Ou seja, quando um jogo dinâmico e instável passa a estar sempre presente na ordenação do mundo. Nesse sentido, a ruptura, a cisão, a separação passam a conviver, lado a lado, com a unidade indiscriminada, a miscelânea, a falta de divisão e de separação. Esse casamento entre Caos e Eros, que em Aristófanes já havia produzido a raça das aves e em Hesíodo havia permitido o nascimento de Éter e de Dia, deixa de ser o encontro primordial entre duas instâncias distintas para se tornar agora um único conceito, uma unidade, a qual, seguindo James Joyce, podemos chamar caosmos.[1] Não mais o caos-ruptura da antiguidade, não mais o caos-unidade da modernidade, mas um casamento entre ambos. Assim, a multiplicidade desordenada quando devém forma produz uma ruptura com o que está a sua volta. De modo inverso essa nova forma é diluída em uma nova multiplicidade. Essa interação entre caos e forma se dá quando cada forma pode se perder mergulhada no todo disforme e novamente ser encontrada em cada parte, numa relação com todas as outras partes desse mesmo todo. Tudo se passa como se uma grande rede de interações impedisse que algo se destacasse, que algo viesse à tona. Mesmo assim, a todo o momento, emergem formas impregnadas dessa miríade de interações caóticas.

A dificuldade em pensar essa junção entre forma e falta de forma está sempre presente em nosso intelecto, o qual funciona como um discriminador que repetidas vezes deduz “ou A possui forma ou A é disforme”. Entretanto, encontramos esse modelo de caosmos numa situação limite da linguagem, isto é, na literatura de James Joyce. Nas palavras de Philip Kuberski: “Joyce estava interessado em ambos, desintegração e recombinação, aniquilação e transmutação”. [2] Neste sentido, o fluxo de linguagem sempre em ruptura e reintegração, faz surgir e se dissolver cada significado mediante a interação de palavras, tal como afirma Catherine Keller:

“O riacho feliz da linguagem de Joyce revela por si (...) não a falta de sentido, mas um excesso de sentido nos quais cada palavra do livro, como toda unidade do universo, vem emaranhada no imprevisível, no alusivo múltiplo, nas interfluências.”[3]

Mas não apenas isso, o conceito de Joyce segue em consonância com a moderna teoria do caos, onde analogamente uma profusão de interações dá à luz a fenômenos naturais distintos, que mais uma vez interferem no mesmo sistema de onde surgem, promovendo assim sempre uma relação de instabilidade.

“Foi dito que o chaosmos de Joyce pressagia a ciência do caos, tal como se aprende a conjugar as multiplicidades incontáveis de interações entre a ponta de uma asa de uma borboleta, uma brisa, um rio, um oceano, uma tempestade distante.”[4]

Essa consonância entre Joyce e as modernas teorias do caos findam por nos levar de volta à Grécia em seus primórdios. Não mais a Hesíodo e seu deus da cissura, mas a filósofos como Heráclito e também Epicuro. Nesse sentido, é interessante notar como a teoria do caos foi capaz de recuperar uma filosofia que permaneceu sempre à margem durante séculos. Assim, Prigogine não deixa dúvidas ao afirmar: “Foi Epicuro o primeiro a estabelecer os termos do dilema a que a física moderna conferiu o peso de sua autoridade.”[5] Epicuro não se interessava pelo deus Caos (como Hesíodo), nem possuía um discurso sobre uma união desordenada e primordial (como Anaxágoras e Anaximandro), a contribuição do filósofo grego foi bem mais sutil. Ela diz respeito a uma associação entre a auto-organização e a falta de equilíbrio e instabilidade do mundo. Em outras palavras, ela privilegia uma desordem intimamente ligada à ordem, mais uma vez, numa espécie de caosmos.

Esse chaosmos, presente no clínamen de Epicuro e intuído de maneira pontual no filósofo escocês não poderia passar despercebido no campo das artes, onde tal união foi excepcionalmente valorizada. Na estética esse novo caos ganhou espaço, justamente para explicar uma nova forma de obra de arte. Mas a importância do caos no campo das artes se dá também por uma outra razão. Esse campo é o lugar privilegiado onde a criação encontra o seu momento mais extremo; onde a invenção tem o seu ponto mais alto; onde surgem qualidades, “jamais vistas, jamais pensadas.”[6] Por essa razão, entendemos que uma compreensão mais apurada do conceito de caos implica numa compreensão do universo artístico no qual ele está inserido, tal como esse conhecimento implica numa estética do caos.

Notas:

[1] Tomamos emprestado aqui a expressão de James Joyce: "[E]very person, place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time" (JOYCE, J. Finnegans Wake, p. 118). O conceito filosófico, entretanto, vem de Deleuze, o qual (ao menos provisoriamente) nos parece o mais apropriado para explicitar essa fusão entre ordem e desordem, cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido, p. 269-70. Essa ordem, que não se opõe ao caos, o filósofo Francês encontra também em Nietzsche. Todavia, se compreendemos corretamente o conceito de Deleuze, nos parece que Schelling merece o privilégio de ter sido o primeiro a intuir a fusão entre ordem e desordem no âmbito das artes.
[2] Chaosmos: Literature, Science, and Theory, p. 64.
[3] KELLER. C. Face of the Deep: A Theology of Becoming, p. 12.
[4] Idem, ibdem.
[5] PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas, p. 17.
[6] GUATARRI, Félix. Caosmose, p. 135. Apesar de concordarmos com Guatarri, precisamos admitir que não apenas nas artes, mas também na guerra encontramos um lugar privilegiado onde há um jogo entre caos e criação. Todavia, o tratado de Clausewitz sobre a guerra somente é publicado em 1837, bem depois das primeiras reflexões sobre a relação entre caos e criação artística.

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